Um Orçamento Participativo é um orçamento votado pelos cidadãos. Ou seja, um novo modelo de governação - a política do futuro? Uma realidade que, contudo, não chegou ainda à maioria dos cidadãos, que nem sonham que podem propor projectos de investimento para a sua cidade ou votar naqueles em que quiserem. Porquê? Porque são poucas as cidades que adoptaram este mecanismo, como Lisboa, onde até há pouco isto funcionava pela Internet. E, sobretudo, porque no caso dos lisboetas muitos não usam a Internet.
Lisboa Numérica - eis o nome do projecto apresentado pelo fotógrafo lisboeta Raul Cruz, 41 anos, ao Orçamento Participativo (OP) da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para 2010/11. Raul Cruz relança assim, este ano, um projecto aprovado no ano passado pela equipa que analisa a viabilidade técnica das propostas dos cidadãos, tendo o mesmo sido avaliado em 200.000 euros. Porém, em 2009, a proposta não reuniria os votos suficientes para avançar.
Porque ficou o projecto de fora? Uma das razões será a forma escolhida para a votação dos projectos pelos cidadãos: a votação online era, então, a única maneira de participar tanto na apresentação de projectos como na sua votação. Isto faz sentido num país em que 55,4 por cento da população não usa a Internet, a maioria por falta de interesse ou porque não a sabe utilizar? Apesar dos inúmeros incentivos à aquisição de equipamento e formação, um estudo recente do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE (divulgado em Julho passado, em Lisboa, na 11.ª conferência anual do World Internet Project) concluiu ter Portugal muito caminho para fazer em matéria de massificação do uso da Internet. Cerca de metade dos portugueses que não usam a Internet têm 55 ou mais anos, 20 por cento não têm computador e/ou dinheiro suficiente para pagar o acesso à Internet e metade não vê qualquer interesse na sua utilização.
Os dados falam por si e a conclusão em relação a esta nova forma de gerir o dinheiro de uma cidade é que muitos terão sido os lisboetas inibidos de participar na votação dos Orçamentos Participativos de 2008 e 2009 - por não serem capazes de autonomamente se registarem no respectivo site, apresentarem propostas e/ou votarem. No contexto de umas eleições, equivaleria a não permitir o voto aos cidadãos que não sabem ler nem escrever. Um sistema de participação que, embora tenha sido melhorado por via das assembleias participativas de bairro, levadas a cabo este ano por grupos de freguesias, e que permitiram a apresentação de propostas in loco, merecia ser reavaliado, por forma a incluir todos os cidadãos - incluindo os que não usam a Internet.
A votação por telemóvel seria porventura uma solução mais inclusiva, atendendo à popularidade e facilidade de utilização do telemóvel pela generalidade da população portuguesa. Uma solução que, por outro lado, serviria a justeza do sistema de votação, restringindo cada voto a um número telefónico.
O mesmo estudo levado a cabo pelos investigadores do ISCTE confirmou, por outro lado, que as preferências dos portugueses no acesso à informação vão para a televisão e para os jornais - os meios preferidos por perto de 80 por cento dos inquiridos.
Apesar da intenção expressa pela CML no sentido da cabal divulgação pública do OP (nomeadamente através das juntas de freguesia e associações, impressão de cartazes e folhetos, anúncios de imprensa e disponibilização de espaços com acesso gratuito à Internet), a edição de 2009/10 chegou ao conhecimento de poucos. Uma falha que uma boa campanha de televisão decerto colmataria, e que na edição deste ano terá ficado minorada pela organização das referidas assembleias participativas de bairro - que a um tempo permitiram a apresentação de propostas fora da Internet (374 participantes presenciais, segundo a estatística camarária) e a divulgação da iniciativa junto das populações cujas vidas não passam pela Internet. Se o OP quer ser "o rosto de uma nova forma de governação, promovendo a participação directa dos cidadãos na definição das prioridades de investimento para a cidade" - palavras da vereadora da Modernização Administrativa e Descentralização de Lisboa, Graça Fonseca -, a verdade é que há entre os discursos políticos e a realidade um muro erguido pelo desconhecimento. No contexto de umas eleições do sistema representativo, equivaleria a não haver campanha eleitoral, ou a Comissão Nacional de Eleições a divulgação da data.
Para além de documentos, Lisboa Numérica propõe-se digitalizar também livros, quadros, gravuras e até mesmo património arquitectónico edificado - memória cujo destino primeiro é a sua disponibilização ao público, em bases de dados que poderiam nalguns casos ser posteriormente geradores de receitas. Um projecto de grande escala, ao preço de uma parcela do OP de Lisboa - bolo correspondente a 5,4 por cento do orçamento de investimento da autarquia, ou seja, cinco milhões de euros, verba que na edição do ano passado viu tecnicamente aprovados dezenas de projectos, embora votados pelos cidadãos fossem apenas 12. Participantes que foram na sua maioria mulheres, com mais de 26 anos e menos de 45, e grau de escolaridade superior. Não viabilizados tecnicamente pela CML na edição do ano passado ficariam dezenas de projectos, cuja visão de conjunto ilustra as carências da população: escolas, jardins-de-infância, centros sociais de apoio a idosos, ecopontos, rolhómetros, pilhómetros e entrepostos de recolha de óleos de fritura, espaços verdes, pavimentação e iluminação de vias, infra-estruturas desportivas, estacionamentos públicos, melhoramentos na rede de transportes ou reabilitação de edifícios.
Actualmente na sua terceira edição, o OP de Lisboa cumpre até ao próximo dia 15 de Setembro a fase de avaliação técnica de propostas (este ano mais de 900), seguindo-se o período de votação pelos cidadãos daquelas que passarem o crivo técnico camarário.
Lisboa, um exemplo
Para Nélson Dias, sociólogo especialista em metodologias participativas e planeamento estratégico, o exemplo do OP de Lisboa evidencia, apesar das falhas, "uma abertura política interessante". Isto para além de Lisboa ser a primeira (e até agora a única) capital europeia a fazer o OP em todo o território do município.
Há grandes cidades, como Sevilha, em Espanha, que tem 700.000 habitantes e que, embora não sendo uma capital, tem também um OP que contempla toda a cidade. Ou Colónia, na Alemanha, que tem um milhão de habitantes e um OP para toda a cidade - um processo que é também digital, tal como em Lisboa, embora apenas consultivo. Mas, falando de capitais europeias, como Paris, Roma ou Berlim (que também têm OP mas apenas em parte da cidade), Lisboa é a primeira a lançar um processo deliberativo aberto a toda a cidade. Uma experiência que, se tem méritos, tem também ainda muito caminho a percorrer, quer no sentido da adequação dos processos à sua finalidade, quer no que respeita ao impacto da iniciativa junto dos cidadãos. "As autarquias em Portugal não têm propriamente uma tradição de processos de participação como estes, em que as pessoas são convidadas a discutir e a decidir os investimentos. Isso implica mudar uma lógica de funcionamento e também preparar a autarquia para essa mudança", vinca Nélson Dias.
Para este ex-consultor da CML, é evidente que "a Internet limita a participação de grupos vastos da população - as assembleias participativas demonstraram que há muitos cidadãos disponíveis para participar e que não o poderiam fazer doutro modo que não o presencial". Um factor de exclusão à participação que a CML previu minorar com a realização de assembleias durante o período da eleição dos projectos, em Outubro - para apoiar a votação de pessoas que não têm acesso à Internet ou que têm dificuldade em votar virtualmente. Nélson Dias observa, contudo, que esta ajuda não resolve aquele que permanece o problema de fundo do actual sistema político: a falta de vontade das pessoas em participar, tendo-se elas "demitido dessa sua responsabilidade e delegado tudo nos políticos, colocando-se, portanto, numa posição muito confortável de crítica sem participação". Daqui "resultam dois défices": um "défice de representação", em virtude de "muitas pessoas não se sentirem representadas, ou nem sequer conhecerem os políticos que as representam", e um "défice de participação", porque "muitas pessoas acham que não vale a pena fazê-lo". "É neste cenário, de uma sociedade afastada da participação política, que os OP estão a tentar vingar."Porém, Nélson Dias pensa que, apesar das dificuldades, o OP em Lisboa demonstrou já ser um sistema que premeia a participação: "A prová-lo esteve a mobilização dos ciclistas que, no primeiro ano do OP na capital, fez vingar o projecto de construção de ciclovias. E voltou a acontecer na segunda edição, com a mobilização dos defensores dos animais em torno da construção do canil/gatil municipal. Penso que isto é incentivador para que outros grupos se organizem em torno dos seus interesses."
Além da Internet
Defensor dos processos presenciais, Nélson Dias pensa que se deve "não excluir a Internet, mas diversificar os meios de acesso". "A Internet permite que grupos específicos, como as mulheres e os jovens, que tradicionalmente estão menos disponíveis para se deslocarem às reuniões, proponham ou votem."
Uma última, mas não menos importante, advertência do sociólogo: "Não formatar modelos, não criar receitas. Lisboa tem um modelo, mas a freguesia de Santa Leocádia, em Viana do Castelo, tem outro - a votação é feita por delegados locais". Ou seja, cada território sabe de si e em matéria de OP não deve haver princípios universais. "A importação de modelos não funciona. A democracia participativa, embora prevista constitucionalmente, está por criar. Os seus conteúdos estão por conceber e este é o momento ideal para experiências como estas, sem impor limites à inovação e à criatividades dos processos. A sua formatação, através de um eventual processo legislativo, poderia comprometer o futuro da própria democracia participativa."(Público)
Lisboa Numérica - eis o nome do projecto apresentado pelo fotógrafo lisboeta Raul Cruz, 41 anos, ao Orçamento Participativo (OP) da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para 2010/11. Raul Cruz relança assim, este ano, um projecto aprovado no ano passado pela equipa que analisa a viabilidade técnica das propostas dos cidadãos, tendo o mesmo sido avaliado em 200.000 euros. Porém, em 2009, a proposta não reuniria os votos suficientes para avançar.
Porque ficou o projecto de fora? Uma das razões será a forma escolhida para a votação dos projectos pelos cidadãos: a votação online era, então, a única maneira de participar tanto na apresentação de projectos como na sua votação. Isto faz sentido num país em que 55,4 por cento da população não usa a Internet, a maioria por falta de interesse ou porque não a sabe utilizar? Apesar dos inúmeros incentivos à aquisição de equipamento e formação, um estudo recente do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE (divulgado em Julho passado, em Lisboa, na 11.ª conferência anual do World Internet Project) concluiu ter Portugal muito caminho para fazer em matéria de massificação do uso da Internet. Cerca de metade dos portugueses que não usam a Internet têm 55 ou mais anos, 20 por cento não têm computador e/ou dinheiro suficiente para pagar o acesso à Internet e metade não vê qualquer interesse na sua utilização.
Os dados falam por si e a conclusão em relação a esta nova forma de gerir o dinheiro de uma cidade é que muitos terão sido os lisboetas inibidos de participar na votação dos Orçamentos Participativos de 2008 e 2009 - por não serem capazes de autonomamente se registarem no respectivo site, apresentarem propostas e/ou votarem. No contexto de umas eleições, equivaleria a não permitir o voto aos cidadãos que não sabem ler nem escrever. Um sistema de participação que, embora tenha sido melhorado por via das assembleias participativas de bairro, levadas a cabo este ano por grupos de freguesias, e que permitiram a apresentação de propostas in loco, merecia ser reavaliado, por forma a incluir todos os cidadãos - incluindo os que não usam a Internet.
A votação por telemóvel seria porventura uma solução mais inclusiva, atendendo à popularidade e facilidade de utilização do telemóvel pela generalidade da população portuguesa. Uma solução que, por outro lado, serviria a justeza do sistema de votação, restringindo cada voto a um número telefónico.
O mesmo estudo levado a cabo pelos investigadores do ISCTE confirmou, por outro lado, que as preferências dos portugueses no acesso à informação vão para a televisão e para os jornais - os meios preferidos por perto de 80 por cento dos inquiridos.
Apesar da intenção expressa pela CML no sentido da cabal divulgação pública do OP (nomeadamente através das juntas de freguesia e associações, impressão de cartazes e folhetos, anúncios de imprensa e disponibilização de espaços com acesso gratuito à Internet), a edição de 2009/10 chegou ao conhecimento de poucos. Uma falha que uma boa campanha de televisão decerto colmataria, e que na edição deste ano terá ficado minorada pela organização das referidas assembleias participativas de bairro - que a um tempo permitiram a apresentação de propostas fora da Internet (374 participantes presenciais, segundo a estatística camarária) e a divulgação da iniciativa junto das populações cujas vidas não passam pela Internet. Se o OP quer ser "o rosto de uma nova forma de governação, promovendo a participação directa dos cidadãos na definição das prioridades de investimento para a cidade" - palavras da vereadora da Modernização Administrativa e Descentralização de Lisboa, Graça Fonseca -, a verdade é que há entre os discursos políticos e a realidade um muro erguido pelo desconhecimento. No contexto de umas eleições do sistema representativo, equivaleria a não haver campanha eleitoral, ou a Comissão Nacional de Eleições a divulgação da data.
Para além de documentos, Lisboa Numérica propõe-se digitalizar também livros, quadros, gravuras e até mesmo património arquitectónico edificado - memória cujo destino primeiro é a sua disponibilização ao público, em bases de dados que poderiam nalguns casos ser posteriormente geradores de receitas. Um projecto de grande escala, ao preço de uma parcela do OP de Lisboa - bolo correspondente a 5,4 por cento do orçamento de investimento da autarquia, ou seja, cinco milhões de euros, verba que na edição do ano passado viu tecnicamente aprovados dezenas de projectos, embora votados pelos cidadãos fossem apenas 12. Participantes que foram na sua maioria mulheres, com mais de 26 anos e menos de 45, e grau de escolaridade superior. Não viabilizados tecnicamente pela CML na edição do ano passado ficariam dezenas de projectos, cuja visão de conjunto ilustra as carências da população: escolas, jardins-de-infância, centros sociais de apoio a idosos, ecopontos, rolhómetros, pilhómetros e entrepostos de recolha de óleos de fritura, espaços verdes, pavimentação e iluminação de vias, infra-estruturas desportivas, estacionamentos públicos, melhoramentos na rede de transportes ou reabilitação de edifícios.
Actualmente na sua terceira edição, o OP de Lisboa cumpre até ao próximo dia 15 de Setembro a fase de avaliação técnica de propostas (este ano mais de 900), seguindo-se o período de votação pelos cidadãos daquelas que passarem o crivo técnico camarário.
Lisboa, um exemplo
Para Nélson Dias, sociólogo especialista em metodologias participativas e planeamento estratégico, o exemplo do OP de Lisboa evidencia, apesar das falhas, "uma abertura política interessante". Isto para além de Lisboa ser a primeira (e até agora a única) capital europeia a fazer o OP em todo o território do município.
Há grandes cidades, como Sevilha, em Espanha, que tem 700.000 habitantes e que, embora não sendo uma capital, tem também um OP que contempla toda a cidade. Ou Colónia, na Alemanha, que tem um milhão de habitantes e um OP para toda a cidade - um processo que é também digital, tal como em Lisboa, embora apenas consultivo. Mas, falando de capitais europeias, como Paris, Roma ou Berlim (que também têm OP mas apenas em parte da cidade), Lisboa é a primeira a lançar um processo deliberativo aberto a toda a cidade. Uma experiência que, se tem méritos, tem também ainda muito caminho a percorrer, quer no sentido da adequação dos processos à sua finalidade, quer no que respeita ao impacto da iniciativa junto dos cidadãos. "As autarquias em Portugal não têm propriamente uma tradição de processos de participação como estes, em que as pessoas são convidadas a discutir e a decidir os investimentos. Isso implica mudar uma lógica de funcionamento e também preparar a autarquia para essa mudança", vinca Nélson Dias.
Para este ex-consultor da CML, é evidente que "a Internet limita a participação de grupos vastos da população - as assembleias participativas demonstraram que há muitos cidadãos disponíveis para participar e que não o poderiam fazer doutro modo que não o presencial". Um factor de exclusão à participação que a CML previu minorar com a realização de assembleias durante o período da eleição dos projectos, em Outubro - para apoiar a votação de pessoas que não têm acesso à Internet ou que têm dificuldade em votar virtualmente. Nélson Dias observa, contudo, que esta ajuda não resolve aquele que permanece o problema de fundo do actual sistema político: a falta de vontade das pessoas em participar, tendo-se elas "demitido dessa sua responsabilidade e delegado tudo nos políticos, colocando-se, portanto, numa posição muito confortável de crítica sem participação". Daqui "resultam dois défices": um "défice de representação", em virtude de "muitas pessoas não se sentirem representadas, ou nem sequer conhecerem os políticos que as representam", e um "défice de participação", porque "muitas pessoas acham que não vale a pena fazê-lo". "É neste cenário, de uma sociedade afastada da participação política, que os OP estão a tentar vingar."Porém, Nélson Dias pensa que, apesar das dificuldades, o OP em Lisboa demonstrou já ser um sistema que premeia a participação: "A prová-lo esteve a mobilização dos ciclistas que, no primeiro ano do OP na capital, fez vingar o projecto de construção de ciclovias. E voltou a acontecer na segunda edição, com a mobilização dos defensores dos animais em torno da construção do canil/gatil municipal. Penso que isto é incentivador para que outros grupos se organizem em torno dos seus interesses."
Além da Internet
Defensor dos processos presenciais, Nélson Dias pensa que se deve "não excluir a Internet, mas diversificar os meios de acesso". "A Internet permite que grupos específicos, como as mulheres e os jovens, que tradicionalmente estão menos disponíveis para se deslocarem às reuniões, proponham ou votem."
Uma última, mas não menos importante, advertência do sociólogo: "Não formatar modelos, não criar receitas. Lisboa tem um modelo, mas a freguesia de Santa Leocádia, em Viana do Castelo, tem outro - a votação é feita por delegados locais". Ou seja, cada território sabe de si e em matéria de OP não deve haver princípios universais. "A importação de modelos não funciona. A democracia participativa, embora prevista constitucionalmente, está por criar. Os seus conteúdos estão por conceber e este é o momento ideal para experiências como estas, sem impor limites à inovação e à criatividades dos processos. A sua formatação, através de um eventual processo legislativo, poderia comprometer o futuro da própria democracia participativa."(Público)
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